Texto: Júlia Dias Carneiro Fonte: G1.Globo.com
Informações: Da BBC Brasil no Rio de Janeiro
Fotos: Google.com.br
Edição: Jorge Luiz da Silva.
Salvador, BA (da redação Itinerante)
Edição: Jorge Luiz da Silva.
Salvador, BA (da redação Itinerante)
Para Caetano e Gil, Brasil vive 'renascimento de forças reacionárias' (Foto: BBC)
Em entrevista à BBC Brasil, cantores falam sobre turnê conjunta, criticam onda conservadora no país e comentam polêmica de show em Israel.
A
sintonia entre os dois é tamanha que vira e mexe um completa o
pensamento do outro. Gil adivinha os fins de frase de Caetano e por
vezes faz coro às suas últimas palavras como uma segunda voz.
Ou
então a conversa de repente vira um pingue-pongue, com as respostas
sendo construídas como uma canção.
Na
tarde de uma quarta-feira, Caetano Veloso e Gilberto Gil se
encontravam no amplo estúdio da Gegê Edições, produtora de Gil no
Rio, para o primeiro dos ensaios para a turnê "Dois Amigos ─
Um Século de Música".
O
reencontro dos dois no palco acontecerá em 11 países europeus a
partir de 25 de junho, começando por Amsterdã, na Holanda.
É
mais um desdobramento da parceria visceral que nasceu em 1963, quando
Caetano e Gil se conheceram na Bahia, à época estudantes
universitários dando os primeiros passos na carreira.
Capas dos discos gravados por Caetano e Gil durante exílio em Londres
Aos
72 anos, nascidos no mesmo ano com um mês e meio de diferença, um
diz que não seria o que é hoje sem o outro.
"Se
eu toco um pouco de violão, é porque vi ele tocar e copiei seus
movimentos e tentei entender o que significavam", diz Caetano
sobre Gil.
"E
se eu aprofundei a minha curiosidade sobre as palavras, a poesia, é
totalmente por causa dele. Ele me ensinou a realmente explorar a
minha alma em busca das questões humanas, sociológicas...É uma das
pessoas mais profundas que já conheci."
"Meu
Deus!", reage Caetano à bajulação do amigo, e os dois
irrompem em risos.
A
música brasileira também não seria a mesma sem os dois.
A
turnê agora comemora 50 anos de suas carreiras, data contada a
partir da primeira gravação de cada um, em 1965 ─ somando um
século de produção musical. É a primeira turnê que os dois fazem
juntos em 21 anos, desde que apresentaram ao mundo o show ligado ao
álbum Tropicália 2, em 1994.
Fim
de ciclo
Nas
décadas de carreira e amizade, Caetano e Gil passaram pela ditadura,
protagonizaram a revolução cultural da Tropicália, compartilharam
a dor e as descobertas do exílio em Londres, depois a alegria da
volta para casa, viram a abertura política do país e acompanharam,
criticaram e comentaram outros momentos-chave da história do Brasil.
Não
é diferente com a situação atual, e os problemas políticos e
econômicos enfrentados pelo governo Dilma. Os dois concordam que o
momento é difícil e consideram que o ciclo do PT no poder está
chegando ao fim.
Nas
eleições presidenciais do ano passado, ambos apoiaram Marina Silva
no primeiro turno. No segundo, Caetano acabou votando em Dilma; já
Gil, que foi do governo petista por cinco anos como Ministro da
Cultura de Lula, não apoiou a permanência do partido.
"Eles
(o PT) já estão no poder há mais de 12 anos. Estamos querendo uma
movimentação, uma mudança. Outros grupos, outro conceito, um outro
planejamento para o Brasil na liderança", diz Gil.
"Votei
na Dilma porque todos aqueles grupos de direita estavam se unindo
contra ela, e eu não simpatizava com eles", afirma Caetano.
"Mas
acho que tudo agora parece indicar um final de um ciclo."
O
fim de ciclo já era aparente no ano passado, considera Caetano, mas
o PT ganhou mais uma vez ─ e neste ano vieram as reações mais
expressivas: o panelaço e os protestos nas ruas pedindo o
impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Onda
conservadora
Nas
manifestações de março e abril nas ruas de cidades do país todo,
Caetano, que como Gil foi preso pela ditadura em 1968, diz ter se
revoltado com a presença de grupos que defendiam a volta das Forças
Armadas e uma "intervenção militar já".
"Isso
para mim é ofensivo. É ofensivo à minha sensibilidade e à minha
inteligência", diz Caetano.
"E
à sua história", completa Gil.
"E
à minha história", concorda Caetano.
"Aquilo
ali era uma coisa de algumas pessoas, uma maluquice. Mas é sintoma.
Há uma questão no mundo com isso mesmo, o renascimento de forças
nitidamente reacionárias. A questão não é que elas sejam
conservadoras. O problema é que são reacionárias, são forças de
reação a qualquer progresso."
O
sintoma se apresenta também no Congresso. Caetano afirma que o
crescente poder do Legislativo na esteira do enfraquecimento do
governo Dilma vem trazendo uma movimentação conservadora "meio
apavorante".
"Esses
projetos que estão sendo votados no Congresso são horríveis, eu
não gosto dessa movimentação, desse negócio ─ diminuição da
maioridade penal, bancada da bala, essa tentativa de restringir mais
ainda o aborto, não abrir para uma legalização do aborto. Toda
essa tendência conservadora, essa pauta", afirma.
Nas
movimentações em curso, ele diz ser evidente que também estão em
jogo projetos políticos dos presidentes da Câmara, Eduardo Cunha, e
do Senado, Renan Calheiros.
"Principalmente
do presidente da Câmara (Cunha), que você vê que tem muito futuro
político, e é mais moderno. Mas é um modernismo conservador, meio
apavorante. Não me sinto bem com o que está acontecendo ali."
Selfie
vira autógrafo
A
conversa passeia por outros fenômenos dos tempos modernos, como as
pegadinhas do corretor ortográfico no celular. Um conta para o outro
o causo de um amigo que sempre acaba chamando uma moça de "moca"
no WhatsApp, e ambos riem da sonoridade do neologismo digital, móca
em vez de moça.
E
chegam à conclusão de que o 'selfie' substituiu o autógrafo, já
que agora por onde passam as pessoas em vez de sacar a caneta sacam o
smartphone, e se ajuntam aos ídolos no quadro. "É melhor, para
não ter que escrever", brinca Gil.
Do
imenso repertório dos dois ao longo dos últimos 50 anos, apenas 22
canções estarão na turnê. A escolha ainda está em aberto, mas
músicas como Esotérico, de Gil, e Desde que o samba é samba, de
Caetano, são algumas certezas.
A
dupla cedeu ao pedido da reportagem e tocou uma música para a BBC
Brasil. Caetano puxou uma das canções que compôs durante o exílio
em Londres, Nine Out of Ten, em que diz estar caminhando sobre a hoje
famosa Portobello Road ─ e sentindo-se vivo.
Na
época em que morou na região de Notting Hill Gate, lembra o cantor,
o bairro estava bem longe da gentrificação de hoje e era um reduto
de classe média baixa.
Na
Portobello Road, imigrantes jamaicanos se reuniam para tocar um
gênero que fascinava Caetano e o levava a caminhar sempre pela rua
para escutar. Depois veio a descobrir o que era: o reggae.
Petição
contra show em Israel
O
show passa por Londres e também por cidades como Lisboa, Bruxelas,
Milão – além de Tel Aviv. E é este o ponto polêmico da turnê.
Uma
petição que vem circulando pelas redes sociais – e já conta com
mais de 12 mil assinaturas pede que Caetano e Gil cancelem o show
programado para 28 de julho em represália às políticas de Israel
em relação às regiões palestinas.
"A
data coincide com o aniversário de um ano dos ataques de Israel a
Gaza, nos quais mais de 2 mil palestinas e palestinos foram mortos",
afirma o abaixo-assinado online divulgado pela organização
Change.org e compartilhado pelas redes sociais.
"Tocar
em Israel é endossar políticas e práticas racistas, coloniais e de
apartheid", continua, concluindo com o apelo: "Tropicália
não combina com apartheid!"
A
petição foi criada pelo grupo Boicote, Desinvestimento e Sanções
contra Israel (BDS), que apoia a causa palestina.
Gil
afirma que se manteve indiferente ao apelo.
"Nós
o consideramos. Nós refletimos sobre os argumentos. São argumentos
fortes, e verdadeiros até certo ponto. Não a ponto de que devemos
considerar Israel uma sociedade de apartheid. É um regime
democrático.
Tenho empatia pelo povo, já estive lá tantas vezes. E
nas duas últimas vezes em que fui tocar lá também enfrentei
objeções, com o mesmo tipo de movimentação internacional para me
dissuadir de ir.
Mas nós vamos", diz Gil.
E
considerariam levar a turnê aos territórios palestinos como
contraponto?
"É
claro! Estou só esperando o convite", afirma ele.
'Oportunidade
de originalidade'
A
despeito da difícil conjuntura atual e do clima de pessimismo com o
país, Caetano desdenha do entusiasmo desenfreado que o Brasil
despertava no exterior alguns anos atrás.
"Quando
vi aquelas capas de revista, a capa da Economist com o Cristo
Redentor decolando, achei um exagero", diz. "Então espero
que o pessimismo que vemos hoje seja um pouco exagerado também."
"O
Brasil pode ser uma experiência muito importante de vida social",
diz. "Pode ser. É horrível como é, tem muitas coisas
horríveis em sua história. Mas acho que é uma oportunidade de
originalidade. Temos essa responsabilidade e devemos encará-la",
afirma ele.
Essa
mensagem que o Brasil teria a dar para o mundo ainda não é clara,
porque não foi articulada, diz Caetano. "Ainda é um rascunho.
Mas o Brasil pode ser uma experiência diferente."
"Somos
esse país gigante no hemisfério sul. Temos uma enorme mistura
racial. Somos latino-americanos, mas não formamos uma unidade com o
resto da América Latina, porque falamos português. Fomos uma
monarquia até tarde demais, a escravidão foi abolida tarde demais.
Mas tudo aponta para uma situação única e original com vantagens e
desvantagens. E tudo que é bom no Brasil poderia ser combinado de
uma maneira mais equilibrada para que realmente possamos dizer
algo... com um tom doce", afirma ele, enfatizando as últimas
palavras na voz macia e musical.
"Agora
que o mundo está finalmente consciente de que a 'maciez' também é
um atributo, de que 'softpower' também é poder, acho que o Brasil
tem muitos ingredientes para se afirmar", completa Gil..
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